INFILTRADO NA KLAN (BLACKkKLANSMAN, 2018, SPIKE LEE)


Resistência, luta, militância, autoafirmação, política, o retrato do negro na arte e no audiovisual, o combate a uma sociedade racista e reacionária em todas as suas formas de manifestação, ao racismo institucionalizado, estrutural e sistêmico e a negritude são temas preciosos na carreira de Spike Lee. Seus filmes são abertamente críticos, políticos, defendem bandeiras importantes, são retratos sociais não apenas de uma época, mas de uma sociedade e até de mundo, mas também conseguem ser tão divertidos quanto emocionantes fazendo o espectador ir do choro as lagrimas em questão de segundos, ele é muito interessado em contar histórias, muito interessado na dramaturgia que move um filme, em construir personagens, em guiar seus atores, em ser absolutamente envolvente em sua narrativa ao mesmo tempo que é completamente fascinante tecnicamente.

Interessado em despertar o espectador para verdades de um mundo injusto com um soco mesmo bem na cara que te abate, em exaltar uma cultura tão sofrida, mas ao mesmo que ele faz isso de uma forma tão emocional, dramática e catártica com uma verdade imensa, ele faz isso com uma graça, um humor e uma beleza na vida que segue os seus personagens, a sua visão de mundo e os seus personagens de uma forma tão sincera também. Seus filmes tão sinceros revelam narrativamente e tecnicamente realidades tristes e pesadas, mas que são acompanhadas de um humor tão exato, verdadeiro e único, uma beleza, uma exaltação ao povo negro, uma complexidade tão grande na sua visão de mundo e até uma doçura que tornam o cinema dele tão tocantes e o estilo dele tão único.

Lee não é um diretor sutil. Seu cinema é tão direto quanto ele próprio, não deixa nada nas entrelinhas e joga tudo o que pensa com uma força imensa. Mas ele realmente precisa ser sutil? Qual é o problema em ser explicito se isso é bem feito e feito de forma significativa? Porque é automaticamente errado ser tão explicito e na cara se o que conta muitas vezes é a forma que você faz isso e como você assume isso? Porque ser sutil é automaticamente uma qualidade e não ser é automaticamente um defeito? O cinema de Lee é fascinante pela força e a sinceridade que ele abraça o que ele acredita e o seu discurso, como ele assume e não nega, é algo tão próprio e verdadeiro, em como a crença que ele tem na sua luta continua e eterna contra essas injustiças se transmite no cinema nas suas histórias e nas suas imagens.

Como ele se dedica a fortalecer esse discurso, lutar por ele e encontrar caminhos e mais caminhos narrativos para expor ele sem nunca abordar esse discurso sendo um cineasta absolutamente criativo de filme pra filme visualmente e narrativamente. Em como a sua obra é produtiva, como ele consegue manter as suas características ao mesmo trabalha que vai pra outros horizontes em um leque ampliado e se divertindo expandindo o seu alcance fechado de público sempre ou na maioria das vezes conseguindo manter as suas mensagens e características autorais do seu cinema.
E mais do que isso Spike Lee não insere a política apenas no seu cinema, ele aprece administrar a sua carreira de maneira política e filosofia: ele parece quer provar que um cineasta negro pode fazer todos os tipos de filmes dos menores aos mais comerciais, para todos os tipos públicos, que ele pode trabalhar nos mais variados gêneros conseguindo manter o seu estilo característico e as suas mensagens em tipos de filmes diferentes e ele pensa em um cinema negro feito por um negro para negros completamente inserido na sua negritude mas que pode atingir um público maior dizendo algo significativo, não pasteurizando o seu discurso e fazendo a sua parte para mudar uma estrutura tão racista como da nossa indústria. Que é um cineasta negro não precisa ser visto como só um cineasta negro, e sim como um grande cineasta e negro.

Por esse jeito de ver o mundo e lidar com a indústria acabam surgindo filmes como O Plano Perfeito (Inside Man, 2006), um excelente filme de assalto, bem feito, divertido, bem– humorado, bem atuado, com ótimos personagens, envolvente, um exercício de gênero bem formidável e que consegue inserir dentro disso traçar os conflitos raciais da sociedade em um filme comercial. No ótimo O Verão de Sam (Summer of Sam, 1999) Spike Lee ao retratar o cotidiano de uma vizinhança ítalo–americana branca usando um serial killer como pano de fundo traça um estudo impressionante sobre o preconceito e conceitos de masculinidade toxica que assombram a família tradicional branca, masculina e heteronormativa.

No fantástico A Última Noite (25th Hour, 2005) ao adaptar um livro com um protagonista branco e um elenco em sua maioria branco, Spike não apenas mostra que um cineasta negro é capaz de adentrar em qualquer narrativa além de ser extremamente necessário contar suas próprias histórias, mas oferece um retrato impecável sobre a tristeza capitalista que move uma grande metrópole e o melhor retrato do real sentimento americano após o 11 de setembro adicionando o seu olhar particular a narrativa sem querer que o filme se adeque ao tom especifico dele e do que é esperado do cinema dele. E sim servindo de agente político para o filme.

Spike vê o seu cinema e a sua carreira com forças e armas políticos, como provocações constantes ao que é esperado e óbvio. Provações essas que muitas vezes não entregam e questionam exatamente o que o público dele espera dele, não apresentando respostas e deixando o debate aberto para continuar a ser feito. Ele não se rende a tratar o mundo como um lugar simplório ou dar a respostas do que é “certo” ou “errado”.
Lee, um verdadeiro artista do audiovisual é inquieto e tenta experimentar, passar e dominar as mais diversas formas de linguagem audiovisual, entre filmes assim, filmes mais pessoais ou documentários (a maioria ótimos), séries, minisséries, especiais, clipes e as mais variadas experimentações, Spike Lee tem seus erros e acertos em uma carreira que pode ser prolifera, sempre produtiva, diversa, até por isso um tanto quanto irregular algumas vezes. Ele nem sempre acerta. Seja a fazer um péssimo remake servindo como diretor de aluguel para a indústria no terrível Oldboy — Dias de Vingança (Oldboy, 2013) ou fazendo um filme de guerra negro, mas que apesar das suas boas intenções falha miseravelmente em Milagre em Sta. Anna (Miracle at St. Anna, 2009).

Porém ao mesmo que possa ser visto como irregular sua filmografia não é menos interessante por isso. Além toda essa relevância e qualidades, mesmo com filmes e filmes muito ruins, existem bons filmes e filmes interessantes em todas as épocas. E os grandes filmes realmente são grandes. Por isso é impossível não falar da carreira de Spike Lee e de quem ele é ao falar de Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman, 2018). Produzido pelo cineasta Jordan Peele (Get Out), Lee ao contar a história de um policial negro, Ron Stallworth (John David Washington), que no começo dos anos 70 se infiltra na Ku Klux Klan, uma organização racista e suprematista branca de extrema direita americana com ajuda do seu parceiro policial branco e judeu Philip "Flip" Zimmerman (Adam Driver), age como um observador e agente artístico do mundo atual que vivemos, respondendo a altura com a sua arte a ascensão global do neofascismo que o mundo passa.

Funcionando também como uma resposta explicita e pensada ao governo Trump e a sua postura asquerosa no incidente de Charlottesville, Infiltrado na Klan consegue ter um escopo muito maior: falando do fascismo presente aqui no Brasil com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, símbolo e representante da extrema direita fascista no poder. E o seu regime, além de conseguir situar como grupos neofacistas continuam no mundo todo desde os movimentos suprematistas brancos americanos, a Ku Klux Klan, movimentos neonazistas e até grupos neofacistas brasileiros como o MBL que adotam um discurso de ódio, intolerância, hipocrisia, pós–verdade e mentira para atingirem os seus objetivos.

É absolutamente impossível falar de um filme explicitamente político (já que político todo filme é) e com um discurso político sem falar de política de forma explicita, e o que toca em Infiltrado na Klan é que a indignação, revolta, luta e resistência conseguem passar da tela para o espectador. Conseguem serem sentidas. É tudo tão verdadeiro, palpável e tão real que acabam sendo chocantes e impressionantes. Ao mesmo tempo Spike Lee aproxima o seu filme muito de Faça A Coisa Certa (Do the Right Thing), sua obra–prima, e faz com que ambos os filmes conversem muito bem. Assim como em Faça A Coisa Certa existe uma revolta, um ideal e uma luta que são muito válidos e lindos assim como nesse filme, ele repete o fato de ao mesmo tempo construir uma comédia que se equilibra com essa narrativa dramática feito um casamento harmonioso mesmo e tem não vergonha nenhuma de ri de si mesma em uma série de sacadas irônicas excelentes.
Lee usa o humor como ferramenta narrativa e de crítica para ressaltar o quão absolutamente patéticos e grotescos são os personagens racistas tratando o opressor como ele merece ser tratado como piada mas sem esquecer por nenhum segundo o quão desprezíveis e perigosos essas pessoas são e o quão terríveis seus atos podem ser, para dar continuidade a um universo próprio tão característico, ao mesmo tempo que o humor na narrativa é uma porrada para fazer o espectador se sentir desconfortável e ter ainda mais certeza de quão absurdo é o que ele está vendo, Spike também faz um clima de comédia de costumes que alivia o espectador o deixando pra cima aqui e ali e o faz respirar para que em seguida ele seja atingido como mais um soco na cara de maneira ainda mais forte e pesada em um tom crescente de violência e ódio.

A diferença é que 30 anos contando com 2019 acabam separando os lançamentos de Infiltrado na Klan e Faça A Coisa Certa. Lee parece ter recuperado a sua força e foco não tão presentes nos seus piores trabalhos como diretor recentemente, mas também está no estado mais maduro da sua carreira. Seus tiros são muito certeiros, claros e bem equilibrados, mas ele consegue também repetir com segurança a ideia mais amadurecida que é mostrada no seu filme de 1989 que não basta apenas ter o ideal de lutar mesmo o reforçando a todo tempo, mas nada adianta isso sem a concepção que ser negro ou qualquer tipo de minoria e decidir viver no mundo que vivemos já é uma luta também. Ser negro e sobreviver numa sociedade racista já é uma luta, e continuar vivendo, levantando e lutando mesmo que o mundo conspire contra.

Spike Lee está num estado tão maduro da sua carreira nesse filme que consegue aos poucos apresentar e criticar uma camada racista, preconceituosa, fascista, supremacista, xenofóbica, homofóbica, armamentista, segregacionista e antissemita do americano branco médio padrão que não é nada diferente do brasileiro branco médio padrão que está sendo revelando cada dia mais no Brasil infelizmente. Em uma das melhores cenas do filme o personagem de Adam Driver é confrontando pelo racista Felix (Jasper Pääkkönen) e quase forçado a admitir que o Holocausto não aconteceu. O que parece muito com movimentos pós–verdade que vemos hoje em dia tentando reescrever a história dizendo por exemplo que nazismo é de esquerda e outros absurdos com interesses reacionários.

Apesar das semelhanças com Faça A Coisa Certa, Spike Lee consegue dar uma cara mais que a própria a um dos seus melhores trabalhos criando mais um grande filme de forma inovadora, criativa, única e muito atual. Após tanto tempo de carreira, Spike mostra essa maturidade já mencionada, mas que também que continua um diretor forte, moderno e sempre relevante.
O comando e o controle que ele exerce sob o filme todo é exato. Ele adiciona camadas e camadas para a história, substância em cima de substância e vários temas flutuando juntos sem jamais perder o foco do que ele quer dizer, o que ele quer com esse filme, a quem ele quer atingir e o que ele quer mostrar. Como já foi dito, Spike Lee vai do humor crítico para falar do opressor e gerar desconforto, tensão e distancia com o que vemos de tão terrível vai do humor absurdo e anárquico para criar comedia em diversas situações inacreditáveis ao mesmo tempo que vai até um humor mais cotidiano para aliviar o espectador passando por um humor mais cartunesco que lembra o seu excelente filme A Hora do Show (Bamboozled).

Spike Lee, que tem a comédia como uma das marcas da sua carreira, usa ela nesse filme e na maioria dos seus filmes de uma forma que foge do uso tradicional da comédia. Além de ser um retrato que ele faz da sua visão de mundo, Lee usa os mais variados estilos de comédia para fortalecer o incomodo e a reflexão do que expõe nas suas narrativas. Como uma provação. O riso nervoso é acompanhado de uma percepção do quão terrível e absurda é aquela situação, e um riso de alivio é seguido por uma porrada na cara logo em seguida.

A amplitude temática da obra é tanta que no roteiro escrito por Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott e o próprio Spike Lee vão se colocando aos poucos e desenvolvendo temas e reflexões sobre o racismo, esse racismo como estrutura de poder político (mostrado em uma cena entre Ron e um colega policial explicitamente numa outra clara piscadela ao governo Trump) e a união de grupos de ódio, o fascismo, o movimento negro, a trama de investigação sobre a Klan, comentários sobre a relação do cinema e a arte com o racismo e a representatividade passando de O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), … E O Vento Levou (Gone with the Wind, 1939) até o movimento Blaxploitation, o sentimento de um homem negro presente na força policial que é um debate muito real, a polícia como uma instituição racista, como o racismo é tão forte e enraizado que consegue superar apenas o contato físico inclusive em suas manifestações, as diversas formas de se combater o racismo debatendo se é possível fazer de fora ou de dentro do sistema, o romance e o paralelo da forma que a obra fala do contexto atual a todo momento usando o passando até um momento final onde isso é explicitado em sua totalidade lembrando o filme Ele Está de Volta (Er ist wieder da).

Todos esses temas são colocados aos poucos, mas de maneira constante e num crescente que todos os esses temas se somam em uma grande ideia geral e cheia de nuances. Cada um deles é muito bem entendido dramaturgicamente e executado pela escrita verborrágica do cinema de Lee. O romance que move o casal romântico central realmente consegue ser doce, envolvente e interessante, os momentos de comédia funcionam por mais diferentes que sejam entre si, os temas são bem colocados e tratados, e os comentários sociais são muito eficazes. O filme constrói todos esses temas, debate eles com toda a profundidade possível e não dá respostas fáceis ou conclusivas para eles. Deixando a reflexão por conta do espectador. O que acaba sendo o mais fascinante do roteiro.
Mesmo sendo durante toda a sua vida um ferrenho crítico da polícia, Spike Lee por exemplo não cai na tentação de demonizar a polícia, mas ao mesmo tempo não deixa de criticar ou trata ela como heroica. O filme está longe de ser pró–policia mostrando que é válida a percepção de se mudar o sistema de dentro, porém questionando e problematizando essa própria lógica o tempo todo ao mesmo tempo em que problematiza a lógica contrária a essa. Ele estabelece a polícia como a intuição cheia de defeitos, estruturalmente racista, opressora, tanto mostrando pelo preconceito que o protagonista é tratado dentro da corporação e no clímax do filme onde ele acaba agredido por dois policias em um momento conclusivo pra narrativa só por ser negro.

Porém ele também se interessa em desenvolver os conflitos internos dentro dela, como é possível existir algum progressismo contido nela mesmo que sufocado e mostrar que precisamos criticar a polícia e precisamos mudar ela, mas também precisamos de uma polícia. Ela é importante. Só que é importante que ela seja mais humana, menos violento e menos racista.

Os diálogos entre Ron e sua namorada Patrice (Laura Harrier) são ótimos justamente porque além de trazerem um momento de leveza que ajuda nesse equilíbrio que ele quer (como por exemplo é uma cena de dança extremamente bem filmada e encantadora), trazem esses debates à tona e nunca se tem uma resposta conclusiva sobre eles porque realmente não tem como existir resposta conclusiva. Patrice acredita que é impossível mudar o sistema por dentro do sistema e luta engajada no Movimento Negro, Ron já vê que é sim movimento tentar mudar o sistema de si dentro.

O filme não diz quem está certo ou errado e nem demoniza nenhum deles, ambos são questionados e ambos também são vistos pelo filme como percepções válidas também, o que o longa faz é apenas estabelecer eles como duas pessoas que lutam contra o racismo, acreditam nos seus ideias e que retratam qualquer luta contra o racismo válida. Spike Lee parece querer dizer que cada pessoa tem a sua forma de lutar contra o racismo e todas tem a sua validade. Ele não acredita em “certo” ou “errado” na luta e nem está interessado nisso.
Em uma ótima cena do filme vemos Ron e Patrice discutindo sobre o gênero Blaxploitation enquanto vemos figuras e trilhas do filme do gênero, a gente demonstra como é importante e tocante quando pessoas tem narrativas que os representem e conversem com eles. Ao mesmo tempo que o filme discute o papel da arte e do cinema como força positiva ele problematiza o papel da arte e do cinema para reforçar preconceitos, a superioridade branca e o racismo promovendo desserviços ao ser perigosos, mal intencionados ou irresponsáveis usando filmes como …E O Vento Levou (Gone with the Wind, 1939) e O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) como exemplos um em uma ótima cena de abertura com Alec Baldwin (escalando em uma clara alusão e crítica ao presidente Trump) como um representante da Klan e uma fantástica cena envolvendo a exibição do filme.

Lee também sai do óbvio colocando aqui e ali questionamentos sobre a própria causa do Movimento Negro, porém também foge completamente do perigo de retratar eles como caricaturas extremistas. Além de oferecer mais nuance ao olhar de Spike Lee, esses questionamentos são válidos e comuns a qualquer movimento, porém ao mesmo que ele deixa aberto o questionamento ele nunca diminui o papel desses grupos, os vilaniza e reforça a crítica ou a perseguição a esses grupos.

Pelo contrário. Toda a luta, importância e força do Movimento Negro são mostrados de forma afirmativa e empoderada. Patrice por exemplo é uma personagem com uma importância própria, com um papel importante na trama, empoderada, com as suas próprias metas, crenças, lutas e dedica a elas ao mesmo tempo que é muito humana. O filme vai mais longe mostrando isso visualmente e tecnicamente.

Durante um ótimo discurso no começo do filme envolvendo o lendário líder dos direitos civis e socialista Kwame Ture (Corey Hawkins) a câmera começa a se mover e dar closes nos rosto de várias pessoas um após a outra e vemos de forma separada a expressão de empoderamento e reafirmação da sua negritude presente nas suas faces e então temos a consciência do quão válido, positivo e importante é o movimento e o seu papel. E também temos uma construção narrativa dentro do próprio Ron em perceber a sua negritude e a sua consciência de classe. Ao entrar na polícia e se embranquecer engolindo sapos pro racismo, porém o contato com o ativismo iniciado nessa cena e desenvolvido com o passar do filme desperta essas características em Ron.
E isso também é mostrado em uma cena fantástica em que acontece uma montagem paralela entre o discurso de Jerome Turner (Harry Belafonte) para os membros do Movimento Negro e uma exibição de O Nascimento de Uma Nação para os membros da Klan. A montagem excecional de Barry Alexander Brown, a fotografia de Chayse Irvin, a direção e a trilha criam uma cena extremamente impactante em que sentimos a luta, um ideal, a resistência, a união, a força, o companheirismo, a força, a tristeza, a revolta e o horror do mal sendo transmitido por um lado; enquanto vemos o que tem de mais nojento, desprezível, asqueroso, maldoso, intolerante, sujo, nefasto, maldoso e racista com essas pessoas comemorando ao verem imagens que as empoderam.

E um Ron, tendo que assistir a aquilo, e sofrendo internamente como homem negro. Tudo transmitido pelos seus olhos. Pelo seu olhar. E tudo isso transmitido só com imagens e um discurso muito poderoso. Enquanto o encontro do Movimento Negro é visto de forma iluminada, a exibição da Klan é observada nas trevas.

O filme é muito certeiro também na escolha de Spike Lee pelo retrato da extrema direita racista. Ele escolha de maneira muito clara tratar os personagens como caricaturas intencionais. Os racistas no filme são um grupo de monstros idiotas, ao mesmo tempo que eles causam risos nervosos de tão burros e patéticos que são, o filme deixa bem claro o quão eles podem ser perigosos e assustadores. E como eles juntos e organizados podem ser ainda mais perigosos. Talvez o retrato dessas pessoas seja tão absurdo e irreal para algumas pessoas que elas achem que o filme exagera na caricatura, mas será que ao acessar um canal de algum youtuber de direita, ver as pessoas que elegemos ou ligar a televisão na vida real elas são tão diferentes assim? Eu acho que não.

E a união entre os anos 70 e os tempos de hoje são muito bem trazidas tecnicamente tanto na estética da época, no figurino, na reconstituição de época, na música e na filmagem que criam um contraste que curiosamente trabalha em harmonia com o pensamento do filme: como o passado e o presente se mistura, nesse caso, como ele é o mesmo. Esse tom de constate é ouvido também numa excelente trilha sonora de Terence Blanchard que mistura o estilo blackxploitation com o cativante tema central, junto com uma temática musical de hinos sulistas que chega a ser muito assustadoras. É uma mistura fascinante e até épica, porque os momentos da orquestra são muito sombrios e poderosos, enquanto os outros instrumentos têm um tom muito mais alegre. O que acaba refletindo na forma que o próprio filme é.
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A trilha inclusive chega ao seu auge na incrível montagem final onde Spike Lee explicita de forma visual a sua resposta ao governo Trump com esse filme mostrando eventos reais em Charlottesville com a marcha neonazista, a reação de Donald Trump e homenageando Heather Heyer, uma ativista branca que foi atropelada por um supremacista branco durante os protestos. É uma conversa entre ficção e documentário que acaba formando uma lógica com toda a filmografia de Lee inclusive.  

Por mais que o filme o tempo todo estabeleça um paralelo entre o que acontece no filme e o que acontece hoje e possa parecer exagerado demais introduzir essas cenas, o filme é muito inteligente revelando essas cenas de forma forte logo após uma série de momentos catárticos de alivio vemos um momento catártico de revolta, tristeza, pavor e horror ao observar o pior da sociedade. Um soco no estomago traduz bem. Realidade e ficção se misturam em um uso de metalinguagem com os registros documentais em que o filme faz um comentário sobre ele mesmo, fecha o seu ponto sobre o passado e o futuro e se revela em sua totalidade. E tanto a montagem quanto a trilha sonora fazem um trabalho em que é impossível ser um humano e ver essas imagens sem se emocionar, se identificar, ficar em silencio com o choque ou se revoltar com o mundo que vivemos hoje.

E mais uma vez Spike Lee se mostra um excecional diretor de atores. O excelente Adam Driver está ótimo mesmo não tendo muito foco com o seu coadjuvante, mas sabendo balançar o tom do filme trazendo uma interpretação mais cuidadosa e sutil para o longa ao mesmo tempo que se destaca no próprio constate que o filme constrói trazendo a tona uma tensão e uma intensidade assustadora ao ter que ser e agir como aquilo que ele mais despreza. Sua jornada de autodescoberta e de consciência de classe como judeu ao na primeira vez de sua vida conviver com o antissemitismo de perto, se ver como judeu pela primeira vez e ao mesmo tempo reconhecer os seus privilégios é uma discussão discreta, mas tão bonita e cuidadosa quanto a sua interpretação. Laura Harrier está cativante e compõe Patrice com uma verdade e uma garra que saltam para a tela além da sua ótima química com John David Washington.

Topher Grace faz aqui o seu melhor papel desde… That ’70s Show e está ótimo vivendo David Duke, tanto ele quanto os outros atores que interpretam o resto dos membros da Klan se encaixam muito bem na visão artística de Spike Lee: eles são completamente caricaturais cartunescas e cômicas cada um do seu jeito, mas todos funcionam porque existem um sentimento palpável no ar grotesco e algo muito assustador, ruim e perigoso que eles tem dentro de si. Grace é o que se sai melhor nisso compondo esse monstro disfarçado em uma mascara de educação dizendo as coisas mais racistas possíveis com um sorriso e um comportamento carismático e polido. Porém o seu melhor momento é quando ele brevemente sai da sua fachada política para expor o ódio que se esconde dentro dele e que faz dele quem ele é, o que Grace consegue compor muito bem.
E claro o protagonista Washington, filho de Denzel Washington (colaborador de Spike Lee em diversos filmes inclusive), é uma baita revelação e parece ter herdado muito do carisma e talento cativante de seu pai. Ele constrói ao mesmo tempo: um herói cativante em sua jornada pessoal, funciona muito bem nas cenas românticas com Laura, é excecional em retratar os momentos de humor irônico em suas interações com David Duke com um baita timing cômico e combina totalmente com o tom do filme. Ele não tem grandes momentos de entrega dramática, mas se destaca nos seus momentos de auto–reflexo ao questionar o seu papel como negro e policial, sua autodescoberta, seu sentimento de não pertencimento e sua luta contra isso, sobre quem ele é, o que ele quer ser, e o seu horror ao testemunhar o racismo de tão perto e da forma mais horrenda possível.

Ao seu final, Infiltrado na Klan acaba de uma maneira arrebatadora e com uma certeza: é um filme sobre contrastes. E como esses contrastes podem ser casar pro bem e pro mal. Um filme sobre passado e presente, sobre o racismo e negritude, sobre o fascismo e resistência, sobre o ódio e a luta, sobre o caricato e o real, sobre a policia e ser preto, sobre a arte e o cinema usados pro mal e pro bem, sobre chorar e rir, sobre o drama e a comédia, sobre ser ou não negro, sobre ser judeu sem se sentir judeu, sobre ser branco e judeu, sobre a ambição e a simplicidade, sobre como lutar, sobre o exagero e a verdade, sobre o branco e o preto, sobre política e a luta por mudanças, entre outras coisas.

É uma resposta maravilhosamente bem dada, bem feita e que deve ser dada mesma, uma mensagem impactante, ampla e rica com um humor afiado e um teor emocional gigante fazendo um filme único na sua forma: fascinante, extremamente doloroso, pessoal, mas diverso, mas divertido, importante, emocionante, prazeroso, triste, inspirador, impactante e de uma relevância e importância que nem pode ser medidas. Um filme cheio de muitos contrastes dentro de si e que acabam formando uma coisa tão própria, tão gigante, tão visceral no que diz e em como diz, que não pode ser ignorada.

E ver esse filme completamente impactado numa sessão de maioria negra no final do segundo turno das eleições de 2018 em que o fascista estava prestes a ser eleito com direito a gritos de “Ele Não” e aplausos ao filme no final é uma sensação tão incrível, inesquecível e transformadora com cinema que é até complicada de ser expressa em palavras. Viva ao “Ele Não” para os fascistas internacionais e tropicais. E viva aos Spike Lee que existem e lutam por aí.

Comentários

  1. Ótima análise. Eu gostei de tudo o que o filme apresenta. Spike Lee finalmente voltou a "incomodar". Filmaço.

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