INFILTRADO NA KLAN (BLACKkKLANSMAN, 2018, SPIKE LEE)

Resistência, luta, militância, autoafirmação, política, o retrato do negro na arte e no audiovisual, o combate a uma sociedade racista e reacionária em todas as suas formas de manifestação, ao racismo institucionalizado, estrutural e sistêmico e a negritude são temas preciosos na carreira de Spike Lee. Seus filmes são abertamente críticos, políticos, defendem bandeiras importantes, são retratos sociais não apenas de uma época, mas de uma sociedade e até de mundo, mas também conseguem ser tão divertidos quanto emocionantes fazendo o espectador ir do choro as lagrimas em questão de segundos, ele é muito interessado em contar histórias, muito interessado na dramaturgia que move um filme, em construir personagens, em guiar seus atores, em ser absolutamente envolvente em sua narrativa ao mesmo tempo que é completamente fascinante tecnicamente.
Interessado em despertar
o espectador para verdades de um mundo injusto com um soco mesmo bem na cara
que te abate, em exaltar uma cultura tão sofrida, mas ao mesmo que ele faz isso
de uma forma tão emocional, dramática e catártica com uma verdade imensa, ele
faz isso com uma graça, um humor e uma beleza na vida que segue os seus
personagens, a sua visão de mundo e os seus personagens de uma forma tão
sincera também. Seus filmes tão sinceros revelam narrativamente e tecnicamente
realidades tristes e pesadas, mas que são acompanhadas de um humor tão exato,
verdadeiro e único, uma beleza, uma exaltação ao povo negro, uma complexidade
tão grande na sua visão de mundo e até uma doçura que tornam o cinema dele tão
tocantes e o estilo dele tão único.
Lee não é um diretor
sutil. Seu cinema é tão direto quanto ele próprio, não deixa nada nas
entrelinhas e joga tudo o que pensa com uma força imensa. Mas ele realmente
precisa ser sutil? Qual é o problema em ser explicito se isso é bem feito e
feito de forma significativa? Porque é automaticamente errado ser tão explicito
e na cara se o que conta muitas vezes é a forma que você faz isso e como você
assume isso? Porque ser sutil é automaticamente uma qualidade e não ser é
automaticamente um defeito? O cinema de Lee é fascinante pela força e a
sinceridade que ele abraça o que ele acredita e o seu discurso, como ele assume
e não nega, é algo tão próprio e verdadeiro, em como a crença que ele tem na
sua luta continua e eterna contra essas injustiças se transmite no cinema nas
suas histórias e nas suas imagens.
Como ele se dedica a
fortalecer esse discurso, lutar por ele e encontrar caminhos e mais caminhos
narrativos para expor ele sem nunca abordar esse discurso sendo um cineasta
absolutamente criativo de filme pra filme visualmente e narrativamente. Em como
a sua obra é produtiva, como ele consegue manter as suas características ao
mesmo trabalha que vai pra outros horizontes em um leque ampliado e se
divertindo expandindo o seu alcance fechado de público sempre ou na maioria das
vezes conseguindo manter as suas mensagens e características autorais do seu
cinema.

E mais do que isso Spike
Lee não insere a política apenas no seu cinema, ele aprece administrar a sua
carreira de maneira política e filosofia: ele parece quer provar que um
cineasta negro pode fazer todos os tipos de filmes dos menores aos mais
comerciais, para todos os tipos públicos, que ele pode trabalhar nos mais
variados gêneros conseguindo manter o seu estilo característico e as suas
mensagens em tipos de filmes diferentes e ele pensa em um cinema negro feito
por um negro para negros completamente inserido na sua negritude mas que pode
atingir um público maior dizendo algo significativo, não pasteurizando o seu
discurso e fazendo a sua parte para mudar uma estrutura tão racista como da
nossa indústria. Que é um cineasta negro não precisa ser visto como só um
cineasta negro, e sim como um grande cineasta e negro.
Por esse jeito de ver o
mundo e lidar com a indústria acabam surgindo filmes como O Plano Perfeito
(Inside Man, 2006), um excelente filme de assalto, bem feito, divertido, bem–
humorado, bem atuado, com ótimos personagens, envolvente, um exercício de
gênero bem formidável e que consegue inserir dentro disso traçar os conflitos
raciais da sociedade em um filme comercial. No ótimo O Verão de Sam (Summer of
Sam, 1999) Spike Lee ao retratar o cotidiano de uma vizinhança ítalo–americana
branca usando um serial killer como pano de fundo traça um estudo
impressionante sobre o preconceito e conceitos de masculinidade toxica que
assombram a família tradicional branca, masculina e heteronormativa.
No fantástico A Última
Noite (25th Hour, 2005) ao adaptar um livro com um protagonista branco e um
elenco em sua maioria branco, Spike não apenas mostra que um cineasta negro é
capaz de adentrar em qualquer narrativa além de ser extremamente necessário
contar suas próprias histórias, mas oferece um retrato impecável sobre a
tristeza capitalista que move uma grande metrópole e o melhor retrato do real
sentimento americano após o 11 de setembro adicionando o seu olhar particular a
narrativa sem querer que o filme se adeque ao tom especifico dele e do que é
esperado do cinema dele. E sim servindo de agente político para o filme.
Spike vê o seu cinema e a
sua carreira com forças e armas políticos, como provocações constantes ao que é
esperado e óbvio. Provações essas que muitas vezes não entregam e questionam
exatamente o que o público dele espera dele, não apresentando respostas e
deixando o debate aberto para continuar a ser feito. Ele não se rende a tratar
o mundo como um lugar simplório ou dar a respostas do que é “certo” ou
“errado”.

Lee, um verdadeiro
artista do audiovisual é inquieto e tenta experimentar, passar e dominar as
mais diversas formas de linguagem audiovisual, entre filmes assim, filmes mais
pessoais ou documentários (a maioria ótimos), séries, minisséries, especiais,
clipes e as mais variadas experimentações, Spike Lee tem seus erros e acertos
em uma carreira que pode ser prolifera, sempre produtiva, diversa, até por isso
um tanto quanto irregular algumas vezes. Ele nem sempre acerta. Seja a fazer um
péssimo remake servindo como diretor de aluguel para a indústria no terrível
Oldboy — Dias de Vingança (Oldboy, 2013) ou fazendo um filme de guerra negro,
mas que apesar das suas boas intenções falha miseravelmente em Milagre em Sta.
Anna (Miracle at St. Anna, 2009).
Porém ao mesmo que possa
ser visto como irregular sua filmografia não é menos interessante por isso.
Além toda essa relevância e qualidades, mesmo com filmes e filmes muito ruins,
existem bons filmes e filmes interessantes em todas as épocas. E os grandes
filmes realmente são grandes. Por isso é impossível não falar da carreira de
Spike Lee e de quem ele é ao falar de Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman,
2018). Produzido pelo cineasta Jordan Peele (Get Out), Lee ao contar a história de um policial negro, Ron Stallworth (John
David Washington), que no começo dos anos 70 se infiltra na Ku Klux Klan, uma
organização racista e suprematista branca de extrema direita americana com ajuda do seu parceiro policial branco e judeu Philip "Flip" Zimmerman (Adam Driver), age
como um observador e agente artístico do mundo atual que vivemos, respondendo a
altura com a sua arte a ascensão global do neofascismo que o mundo passa.
Funcionando também como
uma resposta explicita e pensada ao governo Trump e a sua postura asquerosa no
incidente de Charlottesville, Infiltrado na Klan consegue ter um escopo muito
maior: falando do fascismo presente aqui no Brasil com a eleição do presidente
Jair Bolsonaro, símbolo e representante da extrema direita fascista no poder. E
o seu regime, além de conseguir situar como grupos neofacistas continuam no
mundo todo desde os movimentos suprematistas brancos americanos, a Ku Klux
Klan, movimentos neonazistas e até grupos neofacistas brasileiros como o MBL
que adotam um discurso de ódio, intolerância, hipocrisia, pós–verdade e mentira
para atingirem os seus objetivos.
É absolutamente
impossível falar de um filme explicitamente político (já que político todo
filme é) e com um discurso político sem falar de política de forma explicita, e
o que toca em Infiltrado na Klan é que a indignação, revolta, luta e
resistência conseguem passar da tela para o espectador. Conseguem serem
sentidas. É tudo tão verdadeiro, palpável e tão real que acabam sendo chocantes
e impressionantes. Ao mesmo tempo Spike Lee aproxima o seu filme muito de Faça
A Coisa Certa (Do the Right Thing), sua obra–prima, e faz com que ambos os
filmes conversem muito bem. Assim como em Faça A Coisa Certa existe uma
revolta, um ideal e uma luta que são muito válidos e lindos assim como nesse
filme, ele repete o fato de ao mesmo tempo construir uma comédia que se
equilibra com essa narrativa dramática feito um casamento harmonioso mesmo e
tem não vergonha nenhuma de ri de si mesma em uma série de sacadas irônicas
excelentes.

Lee usa o humor como
ferramenta narrativa e de crítica para ressaltar o quão absolutamente patéticos
e grotescos são os personagens racistas tratando o opressor como ele merece ser
tratado como piada mas sem esquecer por nenhum segundo o quão desprezíveis e
perigosos essas pessoas são e o quão terríveis seus atos podem ser, para dar
continuidade a um universo próprio tão característico, ao mesmo tempo que o
humor na narrativa é uma porrada para fazer o espectador se sentir
desconfortável e ter ainda mais certeza de quão absurdo é o que ele está vendo,
Spike também faz um clima de comédia de costumes que alivia o espectador o
deixando pra cima aqui e ali e o faz respirar para que em seguida ele seja
atingido como mais um soco na cara de maneira ainda mais forte e pesada em um
tom crescente de violência e ódio.
A diferença é que 30 anos
contando com 2019 acabam separando os lançamentos de Infiltrado na Klan e Faça
A Coisa Certa. Lee parece ter recuperado a sua força e foco não tão presentes
nos seus piores trabalhos como diretor recentemente, mas também está no estado
mais maduro da sua carreira. Seus tiros são muito certeiros, claros e bem
equilibrados, mas ele consegue também repetir com segurança a ideia mais
amadurecida que é mostrada no seu filme de 1989 que não basta apenas ter o
ideal de lutar mesmo o reforçando a todo tempo, mas nada adianta isso sem a
concepção que ser negro ou qualquer tipo de minoria e decidir viver no mundo
que vivemos já é uma luta também. Ser negro e sobreviver numa sociedade racista
já é uma luta, e continuar vivendo, levantando e lutando mesmo que o mundo
conspire contra.
Spike Lee está num estado
tão maduro da sua carreira nesse filme que consegue aos poucos apresentar e
criticar uma camada racista, preconceituosa, fascista, supremacista,
xenofóbica, homofóbica, armamentista, segregacionista e antissemita do
americano branco médio padrão que não é nada diferente do brasileiro branco
médio padrão que está sendo revelando cada dia mais no Brasil infelizmente. Em
uma das melhores cenas do filme o personagem de Adam Driver é confrontando pelo
racista Felix (Jasper Pääkkönen) e quase forçado a admitir que o Holocausto não
aconteceu. O que parece muito com movimentos pós–verdade que vemos hoje em dia
tentando reescrever a história dizendo por exemplo que nazismo é de esquerda e
outros absurdos com interesses reacionários.
Apesar das semelhanças
com Faça A Coisa Certa, Spike Lee consegue dar uma cara mais que a própria a um
dos seus melhores trabalhos criando mais um grande filme de forma inovadora,
criativa, única e muito atual. Após tanto tempo de carreira, Spike mostra essa
maturidade já mencionada, mas que também que continua um diretor forte, moderno
e sempre relevante.
O comando e o controle
que ele exerce sob o filme todo é exato. Ele adiciona camadas e camadas para a
história, substância em cima de substância e vários temas flutuando juntos sem
jamais perder o foco do que ele quer dizer, o que ele quer com esse filme, a
quem ele quer atingir e o que ele quer mostrar. Como já foi dito, Spike Lee vai
do humor crítico para falar do opressor e gerar desconforto, tensão e distancia
com o que vemos de tão terrível vai do humor absurdo e anárquico para criar
comedia em diversas situações inacreditáveis ao mesmo tempo que vai até um humor
mais cotidiano para aliviar o espectador passando por um humor mais cartunesco
que lembra o seu excelente filme A Hora do Show (Bamboozled).
Spike Lee, que tem a
comédia como uma das marcas da sua carreira, usa ela nesse filme e na maioria
dos seus filmes de uma forma que foge do uso tradicional da comédia. Além de
ser um retrato que ele faz da sua visão de mundo, Lee usa os mais variados
estilos de comédia para fortalecer o incomodo e a reflexão do que expõe nas
suas narrativas. Como uma provação. O riso nervoso é acompanhado de uma
percepção do quão terrível e absurda é aquela situação, e um riso de alivio é
seguido por uma porrada na cara logo em seguida.
A amplitude temática da
obra é tanta que no roteiro escrito por Charlie Wachtel, David Rabinowitz,
Kevin Willmott e o próprio Spike Lee vão se colocando aos poucos e
desenvolvendo temas e reflexões sobre o racismo, esse racismo como estrutura de
poder político (mostrado em uma cena entre Ron e um colega policial
explicitamente numa outra clara piscadela ao governo Trump) e a união de grupos
de ódio, o fascismo, o movimento negro, a trama de investigação sobre a Klan,
comentários sobre a relação do cinema e a arte com o racismo e a
representatividade passando de O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a
Nation, 1915), … E O Vento Levou (Gone with the Wind, 1939) até o movimento
Blaxploitation, o sentimento de um homem negro presente na força policial que é
um debate muito real, a polícia como uma instituição racista, como o racismo é tão forte e enraizado que consegue superar apenas o contato físico inclusive em suas manifestações, as diversas
formas de se combater o racismo debatendo se é possível fazer de fora ou de
dentro do sistema, o romance e o paralelo da forma que a obra fala do contexto
atual a todo momento usando o passando até um momento final onde isso é
explicitado em sua totalidade lembrando o filme Ele Está de Volta (Er ist
wieder da).
Todos esses temas são
colocados aos poucos, mas de maneira constante e num crescente que todos os
esses temas se somam em uma grande ideia geral e cheia de nuances. Cada um
deles é muito bem entendido dramaturgicamente e executado pela escrita
verborrágica do cinema de Lee. O romance que move o casal romântico central
realmente consegue ser doce, envolvente e interessante, os momentos de comédia
funcionam por mais diferentes que sejam entre si, os temas são bem colocados e
tratados, e os comentários sociais são muito eficazes. O filme constrói todos
esses temas, debate eles com toda a profundidade possível e não dá respostas
fáceis ou conclusivas para eles. Deixando a reflexão por conta do espectador. O
que acaba sendo o mais fascinante do roteiro.

Mesmo sendo durante toda
a sua vida um ferrenho crítico da polícia, Spike Lee por exemplo não cai na
tentação de demonizar a polícia, mas ao mesmo tempo não deixa de criticar ou
trata ela como heroica. O filme está longe de ser pró–policia mostrando que é
válida a percepção de se mudar o sistema de dentro, porém questionando e
problematizando essa própria lógica o tempo todo ao mesmo tempo em que
problematiza a lógica contrária a essa. Ele estabelece a polícia como a
intuição cheia de defeitos, estruturalmente racista, opressora, tanto mostrando
pelo preconceito que o protagonista é tratado dentro da corporação e no clímax
do filme onde ele acaba agredido por dois policias em um momento conclusivo pra
narrativa só por ser negro.
Porém ele também se
interessa em desenvolver os conflitos internos dentro dela, como é possível
existir algum progressismo contido nela mesmo que sufocado e mostrar que
precisamos criticar a polícia e precisamos mudar ela, mas também precisamos de
uma polícia. Ela é importante. Só que é importante que ela seja mais humana,
menos violento e menos racista.
Os diálogos entre Ron e
sua namorada Patrice (Laura Harrier) são ótimos justamente porque além de
trazerem um momento de leveza que ajuda nesse equilíbrio que ele quer (como por
exemplo é uma cena de dança extremamente bem filmada e encantadora), trazem
esses debates à tona e nunca se tem uma resposta conclusiva sobre eles porque
realmente não tem como existir resposta conclusiva. Patrice acredita que é impossível
mudar o sistema por dentro do sistema e luta engajada no Movimento Negro, Ron
já vê que é sim movimento tentar mudar o sistema de si dentro.
O filme não diz quem está
certo ou errado e nem demoniza nenhum deles, ambos são questionados e ambos
também são vistos pelo filme como percepções válidas também, o que o longa faz
é apenas estabelecer eles como duas pessoas que lutam contra o racismo,
acreditam nos seus ideias e que retratam qualquer luta contra o racismo válida.
Spike Lee parece querer dizer que cada pessoa tem a sua forma de lutar contra o
racismo e todas tem a sua validade. Ele não acredita em “certo” ou “errado” na
luta e nem está interessado nisso.

Em uma ótima cena do
filme vemos Ron e Patrice discutindo sobre o gênero Blaxploitation enquanto
vemos figuras e trilhas do filme do gênero, a gente demonstra como é importante
e tocante quando pessoas tem narrativas que os representem e conversem com
eles. Ao mesmo tempo que o filme discute o papel da arte e do cinema como força
positiva ele problematiza o papel da arte e do cinema para reforçar
preconceitos, a superioridade branca e o racismo promovendo desserviços ao ser
perigosos, mal intencionados ou irresponsáveis usando filmes como …E O Vento
Levou (Gone with the Wind, 1939) e O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a
Nation, 1915) como exemplos um em uma ótima cena de abertura com Alec Baldwin
(escalando em uma clara alusão e crítica ao presidente Trump) como um
representante da Klan e uma fantástica cena envolvendo a exibição do filme.
Lee também sai do óbvio
colocando aqui e ali questionamentos sobre a própria causa do Movimento Negro,
porém também foge completamente do perigo de retratar eles como caricaturas
extremistas. Além de oferecer mais nuance ao olhar de Spike Lee, esses questionamentos
são válidos e comuns a qualquer movimento, porém ao mesmo que ele deixa aberto
o questionamento ele nunca diminui o papel desses grupos, os vilaniza e reforça
a crítica ou a perseguição a esses grupos.
Pelo contrário. Toda a
luta, importância e força do Movimento Negro são mostrados de forma afirmativa
e empoderada. Patrice por exemplo é uma personagem com uma importância própria,
com um papel importante na trama, empoderada, com as suas próprias metas,
crenças, lutas e dedica a elas ao mesmo tempo que é muito humana. O filme vai
mais longe mostrando isso visualmente e tecnicamente.
Durante um ótimo discurso
no começo do filme envolvendo o lendário líder dos direitos civis e socialista
Kwame Ture (Corey Hawkins) a câmera começa a se mover e dar closes nos rosto de
várias pessoas um após a outra e vemos de forma separada a expressão de
empoderamento e reafirmação da sua negritude presente nas suas faces e então
temos a consciência do quão válido, positivo e importante é o movimento e o seu
papel. E também temos uma construção narrativa dentro do próprio Ron em
perceber a sua negritude e a sua consciência de classe. Ao entrar na polícia e
se embranquecer engolindo sapos pro racismo, porém o contato com o ativismo
iniciado nessa cena e desenvolvido com o passar do filme desperta essas
características em Ron.

E isso também é mostrado
em uma cena fantástica em que acontece uma montagem paralela entre o discurso
de Jerome Turner (Harry Belafonte) para os membros do Movimento Negro e uma
exibição de O Nascimento de Uma Nação para os membros da Klan. A montagem
excecional de Barry Alexander Brown, a fotografia de Chayse Irvin, a direção e
a trilha criam uma cena extremamente impactante em que sentimos a luta, um
ideal, a resistência, a união, a força, o companheirismo, a força, a tristeza,
a revolta e o horror do mal sendo transmitido por um lado; enquanto vemos o que
tem de mais nojento, desprezível, asqueroso, maldoso, intolerante, sujo,
nefasto, maldoso e racista com essas pessoas comemorando ao verem imagens que
as empoderam.
E um Ron, tendo que
assistir a aquilo, e sofrendo internamente como homem negro. Tudo transmitido
pelos seus olhos. Pelo seu olhar. E tudo isso transmitido só com imagens e um
discurso muito poderoso. Enquanto o encontro do Movimento Negro é visto de
forma iluminada, a exibição da Klan é observada nas trevas.
O filme é muito certeiro
também na escolha de Spike Lee pelo retrato da extrema direita racista. Ele
escolha de maneira muito clara tratar os personagens como caricaturas intencionais.
Os racistas no filme são um grupo de monstros idiotas, ao mesmo tempo que eles
causam risos nervosos de tão burros e patéticos que são, o filme deixa bem
claro o quão eles podem ser perigosos e assustadores. E como eles juntos e
organizados podem ser ainda mais perigosos. Talvez o retrato dessas pessoas
seja tão absurdo e irreal para algumas pessoas que elas achem que o filme
exagera na caricatura, mas será que ao acessar um canal de algum youtuber de
direita, ver as pessoas que elegemos ou ligar a televisão na vida real elas são
tão diferentes assim? Eu acho que não.
E a união entre os anos
70 e os tempos de hoje são muito bem trazidas tecnicamente tanto na estética da
época, no figurino, na reconstituição de época, na música e na filmagem que criam
um contraste que curiosamente trabalha em harmonia com o pensamento do filme:
como o passado e o presente se mistura, nesse caso, como ele é o mesmo. Esse
tom de constate é ouvido também numa excelente trilha sonora de Terence
Blanchard que mistura o estilo blackxploitation com o cativante tema central,
junto com uma temática musical de hinos sulistas que chega a ser muito
assustadoras. É uma mistura fascinante e até épica, porque os momentos da
orquestra são muito sombrios e poderosos, enquanto os outros instrumentos têm
um tom muito mais alegre. O que acaba refletindo na forma que o próprio filme
é.

A trilha inclusive chega
ao seu auge na incrível montagem final onde Spike Lee explicita de forma visual
a sua resposta ao governo Trump com esse filme mostrando eventos reais em
Charlottesville com a marcha neonazista, a reação de Donald Trump e
homenageando Heather Heyer, uma ativista branca que foi atropelada por um
supremacista branco durante os protestos. É uma conversa entre ficção e documentário que acaba formando uma lógica com toda a filmografia de Lee inclusive.
Por mais que o filme o
tempo todo estabeleça um paralelo entre o que acontece no filme e o que
acontece hoje e possa parecer exagerado demais introduzir essas cenas, o filme
é muito inteligente revelando essas cenas de forma forte logo após uma série de momentos catárticos
de alivio vemos um momento catártico de revolta, tristeza, pavor e horror ao
observar o pior da sociedade. Um soco no estomago traduz bem. Realidade e ficção se misturam em um uso de metalinguagem com os registros documentais em que o filme faz um comentário sobre ele mesmo, fecha o seu ponto sobre o passado e o futuro e se revela em sua totalidade. E tanto a
montagem quanto a trilha sonora fazem um trabalho em que é impossível ser um
humano e ver essas imagens sem se emocionar, se identificar, ficar em silencio
com o choque ou se revoltar com o mundo que vivemos hoje.
E mais uma vez Spike Lee
se mostra um excecional diretor de atores. O excelente Adam Driver está ótimo
mesmo não tendo muito foco com o seu coadjuvante, mas sabendo balançar o tom do
filme trazendo uma interpretação mais cuidadosa e sutil para o longa ao mesmo
tempo que se destaca no próprio constate que o filme constrói trazendo a tona
uma tensão e uma intensidade assustadora ao ter que ser e agir como aquilo que
ele mais despreza. Sua jornada de autodescoberta e de consciência de classe
como judeu ao na primeira vez de sua vida conviver com o antissemitismo de perto,
se ver como judeu pela primeira vez e ao mesmo tempo reconhecer os seus privilégios
é uma discussão discreta, mas tão bonita e cuidadosa quanto a sua interpretação.
Laura Harrier está cativante e compõe Patrice com uma verdade e uma garra que
saltam para a tela além da sua ótima química com John David Washington.
Topher Grace faz aqui o
seu melhor papel desde… That ’70s Show e está ótimo vivendo David Duke, tanto
ele quanto os outros atores que interpretam o resto dos membros da Klan se
encaixam muito bem na visão artística de Spike Lee: eles são completamente
caricaturais cartunescas e cômicas cada um do seu jeito, mas todos funcionam
porque existem um sentimento palpável no ar grotesco e algo muito assustador,
ruim e perigoso que eles tem dentro de si. Grace é o que se sai melhor nisso
compondo esse monstro disfarçado em uma mascara de educação dizendo as coisas
mais racistas possíveis com um sorriso e um comportamento carismático e polido. Porém o seu
melhor momento é quando ele brevemente sai da sua fachada política para expor o
ódio que se esconde dentro dele e que faz dele quem ele é, o que Grace consegue
compor muito bem.
E claro o protagonista
Washington, filho de Denzel Washington (colaborador de Spike Lee em diversos
filmes inclusive), é uma baita revelação e parece ter herdado muito do carisma
e talento cativante de seu pai. Ele constrói ao mesmo tempo: um herói cativante
em sua jornada pessoal, funciona muito bem nas cenas românticas com Laura, é
excecional em retratar os momentos de humor irônico em suas interações com
David Duke com um baita timing cômico e combina totalmente com o tom do filme.
Ele não tem grandes momentos de entrega dramática, mas se destaca nos seus
momentos de auto–reflexo ao questionar o seu papel como negro e policial, sua
autodescoberta, seu sentimento de não pertencimento e sua luta contra isso,
sobre quem ele é, o que ele quer ser, e o seu horror ao testemunhar o racismo
de tão perto e da forma mais horrenda possível.
Ao seu final, Infiltrado
na Klan acaba de uma maneira arrebatadora e com uma certeza: é um filme sobre contrastes. E como esses contrastes podem ser casar pro bem e pro mal. Um filme
sobre passado e presente, sobre o racismo e negritude, sobre o fascismo e
resistência, sobre o ódio e a luta, sobre o caricato e o real, sobre a policia
e ser preto, sobre a arte e o cinema usados pro mal e pro bem, sobre chorar e
rir, sobre o drama e a comédia, sobre ser ou não negro, sobre ser judeu sem se sentir judeu, sobre ser branco e judeu, sobre
a ambição e a simplicidade, sobre como lutar, sobre o exagero e a verdade, sobre o branco e o
preto, sobre política e a luta por mudanças, entre outras coisas.
É uma resposta
maravilhosamente bem dada, bem feita e que deve ser dada mesma, uma mensagem
impactante, ampla e rica com um humor afiado e um teor emocional gigante
fazendo um filme único na sua forma: fascinante, extremamente doloroso,
pessoal, mas diverso, mas divertido, importante, emocionante, prazeroso,
triste, inspirador, impactante e de uma relevância e importância que nem pode
ser medidas. Um filme cheio de muitos contrastes dentro de si e que acabam
formando uma coisa tão própria, tão gigante, tão visceral no que diz e em como
diz, que não pode ser ignorada.
E ver esse filme
completamente impactado numa sessão de maioria negra no final do segundo turno das eleições de 2018 em que o fascista estava prestes a ser eleito com direito
a gritos de “Ele Não” e aplausos ao filme no final é uma sensação tão incrível,
inesquecível e transformadora com cinema que é até complicada de ser expressa
em palavras. Viva ao “Ele Não” para os fascistas internacionais e tropicais. E
viva aos Spike Lee que existem e lutam por aí.
Ótima análise. Eu gostei de tudo o que o filme apresenta. Spike Lee finalmente voltou a "incomodar". Filmaço.
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