"VÍCIO FRENÉTICO" ("BAD LIEUTENANT", ABEL FERRARA, 1992): KEITEL E FERRARA DESPIDOS | CRÍTICA
Crítica escrita por Diego Quaglia.
Capa de Cid Souza.
Deveria ser muito mais falado no quão o Harvey Keitel é um ator bem fascinante e subestimado. Até surpreendente. Injustamente menos citado e celebrado do que seus contemporâneos como Robert De Niro e Al Pacino, Keitel sempre teve uma fome como artista de se desafiar mostrando uma versatilidade surpreendente como ator. Lembrado superficialmente e de forma automático por tipos mafiosos e marginais, Keitel tem uma gama de papéis e tipos muito diferentes entre si que fogem de expectativas e padrões em filmes mais ousados, ambiciosos e menos mainstream enquanto sempre conversou muitas vezes muito bem com um cinema mais comercial. Ele é um ator que sempre teve uma natureza de se desafiar e não ficar apenas no que lhe é esperado indo para um caminho muito sensível, corporal e até sexual. Seja nos tipos mais românticos e sensuais que fez com Jane Campion (“O Piano” e “Fogo Sagrado!”), os tipos variados que fez em suas parcerias com Scorsese desde jovens pretensos gangsters atormentados (“Caminhos Perigosos”) até cafetões patéticos (“Taxi Driver”), o criminoso passional (“Cães de Aluguel”) e o criminoso estritamente profissional (“Pulp Fiction”) que fez nos filmes de Tarantino, em composições maravilhosas como o totalmente crível militar francês condenado pelo seu temperamento em “Os Duelistas”, do jovem cheio de questões entre um mundo mais violento e sensível em "Fingers" (1978), filmes do cinema independente que brincam do seu teor carismático e vibrante como ator tipo “Smoke” e outros papéis em filmes do Wes Anderson, do Paul Schrader ou Abel Ferrara, com quem trabalhou aqui em seu grande trabalho. O diretor e Keitel desenvolveram uma parceria de alguns filmes que teve o seu ápice sem dúvidas em “Vício Frenético” (“Bad Lieutenant”) de 1992.
Deveria ser muito mais falado no quão o Harvey Keitel é um ator bem fascinante e subestimado. Até surpreendente. Injustamente menos citado e celebrado do que seus contemporâneos como Robert De Niro e Al Pacino, Keitel sempre teve uma fome como artista de se desafiar mostrando uma versatilidade surpreendente como ator. Lembrado superficialmente e de forma automático por tipos mafiosos e marginais, Keitel tem uma gama de papéis e tipos muito diferentes entre si que fogem de expectativas e padrões em filmes mais ousados, ambiciosos e menos mainstream enquanto sempre conversou muitas vezes muito bem com um cinema mais comercial. Ele é um ator que sempre teve uma natureza de se desafiar e não ficar apenas no que lhe é esperado indo para um caminho muito sensível, corporal e até sexual. Seja nos tipos mais românticos e sensuais que fez com Jane Campion (“O Piano” e “Fogo Sagrado!”), os tipos variados que fez em suas parcerias com Scorsese desde jovens pretensos gangsters atormentados (“Caminhos Perigosos”) até cafetões patéticos (“Taxi Driver”), o criminoso passional (“Cães de Aluguel”) e o criminoso estritamente profissional (“Pulp Fiction”) que fez nos filmes de Tarantino, em composições maravilhosas como o totalmente crível militar francês condenado pelo seu temperamento em “Os Duelistas”, do jovem cheio de questões entre um mundo mais violento e sensível em "Fingers" (1978), filmes do cinema independente que brincam do seu teor carismático e vibrante como ator tipo “Smoke” e outros papéis em filmes do Wes Anderson, do Paul Schrader ou Abel Ferrara, com quem trabalhou aqui em seu grande trabalho. O diretor e Keitel desenvolveram uma parceria de alguns filmes que teve o seu ápice sem dúvidas em “Vício Frenético” (“Bad Lieutenant”) de 1992.
É engraçado notar tanto como Ferrara parecer ter uma
fascinação com esses atores que passeiam entre serem “outsiders” e conversarem
com o mainstream norte–americano – vide suas outras parcerias com tipos como
Willem Dafoe e Christopher Walken – e também é engraçado ver como Keitel usa
aqui tudo que ele pode oferecer enquanto artista e Ferrara faz um uso muito especifico
filmando tudo isso em detalhes: toda a sua fisicalidade, corporal, sexualidade
e sensibilidade. Um cara se expor nesse nível é algo tão brutal quanto
admirável. É um desses casamentos entre ator e filme que a gente não vê todo
dia.
Eu lembro que a primeira vez que vi “Vício
Frenético” eu era adolescente, estava começando a me interessar por cinema de
forma mais consciente e buscando esses filmes mais pesados e “sérios”. Vi ele
em alguma lista da Internet, assisti e lembro de ter fiquei muito chocado e
impactado com ele. Muito mesmo. Inclusive foi na mesma época que eu fui atrás
de alguns outros filmes do Ferrara. Até por isso anos mais tarde assisti
“Bem–Vindo a Nova York” dele já com certa animação. Eu acho que o fascínio do
Ferrara com o aspecto “outsider” tanto daqueles com quem ele trabalha e das
suas obras tem muito a ver com ele mesmo enquanto artista.
Dos grandes diretores do cinema independente
estadunidense, eu diria que o Ferrara é meio que o que o Scorsese seria se não
houvesse uma conversa entre o segundo com a indústria mais comercial e
mainstream. O que não é nem um mérito para um ou demérito para o outro. Ambos
conseguem passear de forma muito proveitosa pelas suas particularidades de
espaços na sua carreira.
Ambos têm um fascínio pelos marginalizados, por
personagens marginais, por temáticas da culpa católica, religião, redenção, a
masculinidade, o próprio cinema, o preço da violência, a vida urbana, máfia e
Nova York – acho que os dois terem um fetiche cênico com o Keitel e o Scorsese
ter escolhido o filme do Ferrara como um dos melhores do anos 90 ajuda na
comparação. Ambos também já passearem por diversos gêneros e formas de arte (de
documentários para o segundo até filmes pornôs e terror de baixo orçamento para
o primeiro), mas Ferrara tem características muito especiais. Seu cinema é uma
busca constante pelo controverso, a provocação, o hardocore da linguagem cinematográfica,
mergulhando muitas vezes no lado mais experimental da linguagem e da imagética
neo–noir de metrópoles para se explorar esses tormentos da alma humana.
Aqui ele vai fundo nisso. Ao contar um estudo de
personagem de um policial católico conhecido apenas como o Tenente interpretado
por Harvey Keitel que investiga o estupro de uma freira por dois homens. O caso
na verdade é um pretexto de Ferrara e dos roteiristas Paul Calderón e Zoë Lund
– os dois também atuam no filme e ela foi a estrela do filme “Mrs. 45” também
do diretor – para acompanharmos de perto o cotidiano do Tenente durante uma
jornada reflexiva em busca de autodescoberta e sobre a sua vida. O Tenente é alcoólatra,
viciado em drogas, sai com prostitutas, é viciado em jogo, é corrupto, egoísta,
mentiroso, abusa do poder, é um homem asqueroso, hipócrita e com desvios
sexuais enormes chegando a abusar de mulheres. Ao mesmo ele se odeia
profundamente, é cheio de auto–aversão, angustia, tormento, remorso, questões
religiosas e é desafiado por conflitos diariamente sobre tentar mudar e ser uma
boa pessoa enquanto se afunda no próprio lixo de ser humano que ele é. Somos
levados a pensar com o Tenente. Alguém tão ruim pode encontrar o perdão e ser
merecedor dele? Se arrepender verdadeiramente? Se redimir? A culpa católica é
um motivador verdadeiro para tudo isso ou uma mera ilusão? Boas ações realmente
valem a pena e desculpam atos tão horríveis? O tormento apaga a dor? Atos tão
perversos podem ficar sem punição? As conclusões disso não são otimistas e ao
mesmo tempo muito menos fechadas em só ângulo enquanto vemos um homem ruim
decaindo e decaindo moralmente enquanto busca uma ideia de redenção que talvez
esteja muito longe ou não.
Ferrara filma tudo isso da maneira mais crua
possível, grosseira e pesada refletindo o estado de espirito do seu
protagonista. Esse estado de espirito viciado, eternamente bêbado e contaminado
por uma cidade podre, descendo para o inferno entre uma força religiosa invisível
transmitida pelo cineasta com uma força sensorial inacreditável na cena da
igreja além dos vários planos e momentos em que a câmera busca essa ideia entre
o mais profano e o sagrado em sua volta. Não exitem nomes justamente porque aquelas pessoas são apenas engrenagens de uma sociedade doente e um mal estar eterno. Não são indivíduos. São seres contaminados. É um caminho sem concessões indo mais
fundo e mais fundo no horror que habita a vida daquele homem. Muito disso também
pela interpretação brilhante do Keitel sem concessões fugindo de qualquer
humanização ou simpatia ao olhar para um homem tão perverso, percebendo que não
existe nada nele que o faça especial, o que torna que a sua dor seja ainda mais
forte e complexa levando a um final em que o Tenente tem que enfrentar os seus
pecados, seus crimes e o que o cerca.
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