NO CORAÇÃO DAS TREVAS (FIRST REFORMED, PAUL SCHRADER, 2018)

Dizem que Jesus se tornou um mártir
religioso ao salvar o mundo se sacrificando. Sacrificando a sua vida. Ao ver a
sociedade destruindo o mundo alguém levaria suas crenças e sua fé ao ponto de
sacrificar a sua moral? Ou diante do sacrifício o ser humano prefere desistir e
se entregar ao desespero completo? Até quanto o amor, a positividade e a doçura
podem ser alcançados em constate com a distorção, o mal e o que tem de pior?
Como lidar com um amor proibido de ser tocado, abraçado, declarado e sentido?
Existem momentos que temos que
voltar ao nosso próprio passado para crescermos, para seguir novos caminhos e
para revisitarmos a nós mesmos. Às vezes o que pensamos do outro na antiguidade
se transmite sobre o que já fizemos e podemos fazer. E ao refletir e pensarmos
sobre todas essas possibilidades existe uma possibilidade de crescimento e
maturidade.
O cineasta Paul Schrader,
roteirista e também diretor desse e de outros filmes, chegou a ter uma carreira
como crítico cinematográfico e passou boa parte da sua carreira admirando,
estudando, elogiando e escrevendo sobre o “cinema transcendental” de diretores
que ele adora como Yasujiro Ozu, Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer. No
entanto na sua própria carreira como roteirista e diretor, o cineasta foi pra
um caminho diferente.
Num caminho em que se
aproxima de mais uma desconstrução do mito cristão como fez no roteiro de A
Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ), que escreveu para o
filme de Martin Scorse. Só que num caminho diferente. Num caminho atual e com
outra visão.

Claro que ainda temos o
estilo dele que ele próprio chama de “man in a room” ao tratar de estudos de
personagens masculinos que falam sobre suas personalidades assumidamente
problemáticas e suas dores, desilusões, amarguras, demônios e fragilidades
resultadas muito da masculinidade tóxica deles. E é óbvio que essas
características durante a sua filmografia toda tem algo do cinema de Bresson,
mas na maior parte do tempo, o cinema de Schrader está interessado em explorar
coisas diferentes dos seus “mestres”.
Seus protagonistas
atormentados estão sim no ponto limite da sua vida, enquanto tentam manter
alguma sanidade usando uma máscara de civilidade ao tentar manter uma relação
com o mundo exterior e outras pessoas. Só que esse ponto limite sempre é
atingido, eles estão na linha fina da desistência e só precisam de um estopim
pra explodirem, a máscara sempre cai e os seus protagonistas sempre chegam num
ponto de explosão e destruição. Mas ele faz filmes que exploram os hábitos
obscuros da sociedade. O sexo, a violência e o marginal são filmados de forma
estilizada, ágil e sem freios.
Vindo desse passado como
crítico de cinema que fica claro em No Coração Das Trevas (First Reformed), a
palavra arriscada é um jeito que parece acertado de se descrever a carreira de
Paul Schrader. Sempre muito prolifico e por isso mesmo tão irregular quanto
talentoso como diretor e roteirista, dos seus melhores trabalhos aos seus
piores trabalhos, sempre existe um risco em experimentar do jeito que for. Isso
muitas vezes não é trazido à tona do melhor jeito possível, mas quando é, ele
atinge com precisão o lugar que quer acertar.
Paul Schrader é um
cineasta muito perspicaz em fazer estudos tanto dos seus personagens, indo a
fundo nas suas personalidades, do universo que eles habitam, estudos que sempre
tocam em temas como masculinidade toxica, repressão, loucura, frustração, a
humanidade e pior dela, do capitalismo, de grandes centros urbanos, corrupção,
dores internas, solidão, laços fraternais, abuso, depressão, suicídio, traumas,
violência seja ela física, psicológica, social ou estrutural, sexo, religião e
principalmente tudo que é marginalizado.
Schrader tem uma natureza
provocadora, ele gosta de explorar o submundo e tudo que é considerado de mais
“depravado” e “doentio” nele. Porém ele não quer só quer te provar, a riqueza
dele está muito além disso, existe um fascínio na sua obra por tudo que é
marginal e por contar histórias de personagens marginalizados dos mais variados
jeitos e sempre de uma forma extremamente profunda indo a fundo na mente e alma
desses protagonistas e nos seus demônios.
O seu cinema é de um
contador de histórias, mas no seu cinema, Schrader não está interessado em
contar histórias voltadas em tramas com começo, meio e fim, e sim em traçar
retratos desses personagens marginais, dos seus universos e dos tormentos que
os acompanham indo a fundo na hora de estudar as suas personalidades. Seus
melhores filmes são estudos de personagens. E todos os elementos de seus filmes
estão lá para pôr luz nesses aspectos.
O que dois homens de
culturas diferentes juntos por laços fraternos (The Yakuza), um motorista de
taxi reacionário com um pensamento bem perto de um eleitor moderno do Bolsonaro
ou do Trump que voltou da guerra afundando na sua solidão, misantropia e na sua
psicopatia (Taxi Driver), um homem atormentado pelo passado em contato com ele
novamente (Obsession), três trabalhadores da classe operaria se voltando contra
um sistema que os oprime (Blue Collar), um pai religioso em desespero sendo
confrontado com o envolvimento da filha com o mundo da pornografia (Hardcore),
um boxeador que é tão talentoso quanto auto–destrutivo (Raging Bull), um gigolô
aproveitador, misógino, homofóbico e racista (American Gigolo), uma jovem
confrontada com transformações e relações do seu próprio gênero, sexualidade e
físicas (Cat People), um gênio levado até o seu final por uma crença nos seus
ideais (Mishima: A Life in Four Chapters), um homem levado a loucura na
tentativa de rejeitar a sua própria realidade que ele tanto odeia em busca de
um ideal (The Mosquito Coast), Jesus no seu retrato mais humano e conflituoso
dividido entre o messias e o homem lidando com o destino e sacrifício (The Last
Temptation of Christ), um traficante de drogas lutando para alcançar uma chance
de vida diferente mas sendo consumido pelo pior do seu universo (Light
Sleeper), um policial problemático atormentado pelas lembranças do abuso do seu
pai, o convívio nefasto com ele e não conseguindo fugir disso e do ciclo de
abuso (Affliction), um motorista de ambulâncias lidando com o stress do seu
emprego, um astro de TV que abraça os excessos desse mundo e isso o custa a
vida (Bringing Out the Dead), um ator de Hollywood entregue ao vícios de uma
vida libidinosa na indústria (Auto Focus), um acompanhante homossexual de
senhoras mais velhas lidando com o mundo da elite política americana (The
Walker) e agora finalmente um pastor em um momento extremo de crise a sua
instituição religiosa e uma crise como humano (First Reformed) tem em comum?
Serem frutos da mente,
obra e autoria de Paul Schrader tanto como roteirista, diretor ou em ambos.

Então em seu último
filme: No Coração da Escuridão (First Reformed), ao contar a história de um
pastor protestante de meia–idade (Ethan Hawke, brilhante) em um momento de
limite e conflito extremo, Schrader pega de forma clara elementos do estilo “transcendental”
que tanto admira agora com uma camada mais calma, sensorial, surrealista e
consegue equilibrar isso com a sua habilidade magistral de trazer profundos e
pesados estudos de personagens ao tratar de um pastor que não apenas tem uma
crise de fé nas intuições religiosas, mas uma crise sobre a humanidade e sobre
a vida, sobre o seu país e sobre a existência humana.
E por conseguir casar tão
bem essas duas vertentes Schrader capta de uma forma extremamente pungente e
forte os conflitos, questionamentos, crises, demônios internos e complexidades
do seu protagonista. Esse estilo duplo ou até triplo se consideramos o quão
“referencial” é esse filme lembrando os trabalhos de fases diferentes do De
Palma e do Paul Thomas Anderson também faz com que No Coração Das Trevas (First
Reformed) seja o estudo de personagem mais “diferente” da filmografia de Paulo
Schrader, um gênio do estudo de personagem, mas também faz com que ele continue
com o que ele mostra que tem de melhor num nível extremo.
Quase uma adaptação
espiritual principalmente de Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’un curé
de campagne, 1951) de Bresson com um Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1963)
de Ingmar Bergman, No Coração das Trevas (First Reformed) com suas referências
artísticas claras, explicitas e assumidas a não só eles mas também Tarkvosky,
Ozu, Dreyer, e muito mais, faz com que Schrader redefina a sua carreira
extraindo do seu passado “velho” um espirito “novo”.
Revisitando a si mesmo,
suas influências e quem ele é mesmo é principalmente remetendo ao seu passado
crítico mas também as suas obras passadas, já que existe muito de Taxi Driver
(1976) no longo e não apenas em uma cena que referencia a icônica cena do copo,
mas em uma das suas criações, Travis Bickle (Robert De Niro), no próprio
Reverendo Toller.
O protagonista masculino
conturbado em um momento de reflexão e crise não se divide apenas entre Travis
e Toller, porém de todos na sua galeria, o pastor talvez seja o que se
assemelhe mais ao arco do motorista de taxi mesmo que eles sejam criaturas
completamente diferentes.
A depressão, o sentimento
de estar perdido, um desagrado com atitudes da sociedade moderna, a solidão, os
traumas e uma busca por fazer algo que vai o libertar desse estado. Se um é um
reacionário psicopata procurando onde impulsionar a sua violência e o outro é
um homem que parece destinado a desgraça procurando com os meios que forem
encontrar um meio de destruir o que de pior cerca a sua fé inabalável com Deus
e se reprimindo.
A crença inabalável em Deus,
o desagrado com a sociedade capitalista e em como ela está inserida na religião
levam Toller ao desespero e ao fanatismo. Tanto Travis quanto Toller querem
“limpar o mundo”. Querem fazer um último ato útil. Ambos agem, um soltando a
sua violência e o outro engolindo seus instintos a um nível doentio para si
mesmo. Porém seria o destino deles o mesmo também? A ilusão surreal de um
destino melhor. O destino dos seus sonhos.
Surpreende como aos 72
anos, Paul Schrader cria um dos seus melhores filmes trabalhando com um
minimalismo gigante, mas que ainda assim reflete com extrema força tanto por
causa de um roteiro tão acertado em suas críticas sociais e questionamentos
filosóficos ao falar de capitalismo, religião, alcoolismo, da crença inabalável
em Deus e o sentimento de um Deus mais humano, da relação da igreja com o
capital, o ódio e o mal transmitido por intuições religiosas, temas como
aborto, ecologia, focando tanto nas contradições do comportamento cristão e na
humanidade extraída muitas vezes em diálogos e até monologo ambos excelentes
que refletem toda essa temática quanto no estudo do seu personagem central, a
todo momento se questionando e questionando o mundo ao seu redor.
Ethan Hawke parece ter
sido destinado à sua vida toda para o momento em que iria viver o Reverendo
Toller. É um papel que ele nasceu para viver, que ele se encaixa com exatidão,
talvez quem sabe a sua obra–prima. Sendo um ator que consegue passear pela
verborragia e pela expressão facial, Hawke consegue dizer muito mais com um
rosto enrugado nessa composição do que muito atores com páginas e mais páginas
de diálogos.
A tristeza transmitida
até em seus sorrisos forçados os questionamentos, a fé, o sofrimento, as
mentiras, a curiosidade perigosa de Toller, o ressentimento, e o amor
inesperado de Toller resultando em um retrato totalmente conflituoso de um
homem perdido. O acompanhando temos a subestimada Amanda Seyfriend em um dos
melhores papéis onde ela tem oportunidade mostrar o seu talento, e Cedric the
Entertainer também surpreendente.
É impressionante e
bastante apurado como Schrader usa a voz de Toller inclusive para transmitir
melhor os conflitos internos que o cercam e os conflitos que passeiam pelo
filme. Schrader parece estar em dos seus momentos mais seguros como diretor ao
lado do seu diretor de fotografia Alexander Dynan não apenas inserindo closes
no rosto de Hawke para expressar a sua dor e tristeza além de investir numa
narrativa sóbria sem querer chamar atenção para si mesmo mas utilizando de
planos detalhes e fechados para ressalvar essas características dos seus
personagens, mas ele segue também fazendo planos abertos que ressaltam um
sentimento de solidão profundo em Toller nos seus momentos de isolamento
caseiro escrevendo o seu diário.
A filmagem mais fechada
do filme ressalta ainda mais o sentimento claustrofóbico que prende Toller, ao
mesmo tempo que a câmera se move de maneira desconfortável refletindo na mente
do pastor. Dynan investe numa fotografia nublada e triste que remete as trevas
que Toller se encontra e a luz que ainda habita a sua alma nesses espaços
lidando muito com o constate. O desconforto que move a alma de Toller aparece
em vários e vários momentos também pelo uso do som que o filme faz o tempo todo.
Ao seu final, Schrader
pega as perguntas iniciais que movem a obra toda e as responde tanto quanto as
deixa abertas em seu filme mais pessoal e autoral talvez. Mas sim as responde.
Do seu próprio jeito. Da sua própria forma. Fechando perfeitamente o arco de
seu pastor. O surreal toma forma e Toller assim como Travis encontra alguma
paz. Nem que seja na sua triste mente.
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