A VERSATILIDADE INCOMUM DE DAVID LYNCH EM "UMA HISTÓRIA REAL" ("THE STRAIGHT STORY", 1999)

Crítica escrita por Diego Quaglia
Capa de Cid Souza

É muito fácil em um primeiro momento sem muita atenção olhar para "Uma História Real" ("The Straight Story") de 1999 com desleixo o vendo como um projeto de "encomenda", "só um filme de estúdio", "um filme menor" e "um filme sem identidade" do David Lynch quando na realidade o que vemos é muito diferente.

Na real o que vemos é um filme que coloca Lynch em um outro enquanto artista. Lynch prova que pode trabalhar com qualquer gênero ou estilo de filme, que não está preso ao seu estilo particular de seus outros filmes e sim está dentro para provocar teses autorais e experimentais sobre a existência humana e a apreciação de arte mas se quiser pode sair disso quando quiser e ser competente como poucos.
Lynch inclusive consegue não ficar preso nem por estúdio como a Disney ou a classificação de um filme. Ele prova mais uma vez que é mesmo um grande cineasta, conseguindo fazer um bom filme como quiser da forma mais versátil possível e que ele pode navegar por novos estilos ou gêneros quando bem entender. Mesmo fugindo do seu estilo surrealista Lynch ainda fala com temas primordiais da sua filmografia: a beleza da alma humana em meio a um mundo de dor, figuras estranhas, marginalizadas, as nossas idiossincrasias de cada dia e a vida mundana do campo e do interior em mais um olhar sobre uma América que nunca é o que parece.

Uma das coisas mais únicas do cinema de Lynch é como ele vê tanto a jornada pela fantasia quanto pela realidade como coisas iguais e ligadas ambas extremamente humanas tanto em seus filmes mais experimentais ou clássicos. Se tem uma coisa que Lynch nunca abandona em seus filmes por mais diferentes que eles sejam é a paixão, a emoção e a humanidade em confrontar o mais abstrato ou o mais comum.
Richard Farnsworth, veterano de Hollywood e eterno coadjuvante que começou a carreira como figurante inclusive, aos 79 anos tem aqui a sua grande chance da vida para brilhar como protagonista numa atuação genial em seu último papel antes de morrer estando perfeito numa das grandes escalações do cinema. Richard é uma figura tão poderosa, quieta, conversando completamente com o naturalismo do filme e de uma forma tão verdadeira. É algo tão comovente e forte que chega a ser um desses momentos únicos em que acessamos um pouco a alma de um homem comum seja em seu monologo tão triste e verdadeiro no bar ou no seu encontro com um sempre exato Harry Dean Stanton onde palavras nem precisam ser ditas pra entendemos toda a relação dos personagens.

Assim como em "O Homem Elefante" e muito da sua obra geral Lynch parece interessado em debater essa beleza da alma humana que se esconde em lugares desconhecidos em mundo de dor como vemos nos dois filmes ao mesmo que o diretor parece ser apaixonado por construir teses sobre a maldade humana invisível aos primeiros olhares. A jornada inusitada de Alvin Straight por um Estados Unidos em busca da reconciliação com o irmão abre uma rica história sobre amor fraternal, perdão e fazer as pazes com o seu final onde nem precisamos ver muito dos personagens interagindo ou falando para entender tudo que acontece.
A trilha linda do seu parceiro habitual Angelo Badalamenti, as cores daquele Estados Unidos rural, o trabalho de câmera com longos takes extraindo o máximo do silêncio e olhares daqueles personagens, tudo faz com que a proximidade de Alvin em sua viagem seja ainda mais linda. Ao abandonar o surrealismo por mais um filme e investir numa história real em todos os sentidos (foi mal rsrs) Lynch faz um dos seus projetos mais belos, ricos e desafiadores. Mostrando que está longe de qualquer zona de conforto, caixinha e que é um desses cineastas únicos que consegue fazer o que quiser sem nunca abandonar quem ele é.

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