“MARCAS DA VIOLÊNCIA” (“A HISTORY OF VIOLENCE”) (2005): QUANDO A VIOLÊNCIA BATE NA PORTA | CRÍTICA


Talvez esse seja o filme que eu vi que melhor sintetiza o que é a violência. Enquanto ação, dinâmica e força invisível da destruição.

Parecido com “O Irlandês” (“The Irishman”, 2019) de ScorseseMarcas da Violência” (“A History of Violence”) funciona como uma síntese da carreira de um grande cineasta já veterano refletindo sobre temas da sua filmografia mas já com um olhar totalmente diferente na sua abordagem especifica ao mesmo tempo que se comunica com toda a sua obra. Em “Marcas da Violência” ao contar a história de um pai de família de uma cidade pequena que após se tornar um herói local e midiático depois matar dois bandidos extremamente violentos acaba encontrando um grupo de forasteiros que acreditam que ele seja um mafioso extremamente violento que atende pelo nome de Joey Cusack isso é até mais notável já que o diretor David Cronenberg inaugura uma fase saindo dos seus horrores experimentais tão particulares que o consagraram para investir num cinema de thriller, máfia e dramas psicológicos. A grande questão é que Cronenberg continua com os seus temas tão autorais da sua carreira e jamais os abandona ao ir pra um lado mais realista: o “porém” é que aqui Cronenberg já maduro refina e expande a sua arte transportando esses temas para um tipo de cinema totalmente diferente onde tudo se comunica muito bem – tanto o fato que esses temas casam completamente com a narrativa que quer e o fato que esses temas engradecem e desafiam de forma única essa narrativa – e onde o diretor consegue chegar no auge da sua versatilidade numa aula de cinema clássico feito de forma primorosa enquanto também equilibrando as suas características e temáticas tão inseparáveis do seu cinema.
Os estudos psicológicos primoroso de personagens atormentados principalmente homens continua aqui encontrando força em Tom Stall (Viggo Mortensen, genial), o protagonista do filme. É fantástico como tanto aqui quanto no seu filme seguinte e filme–irmão desse de 2005 “Senhores do Crime” (“Eastern Promises”, 2007) Cronneberg faz um estudo que vai além só do psicológico indo pro cênico também sobre as faces duplas da masculinidade. O Nikolai também interpretado por Mortensen no filme de 2007 é um homem que luta para esconder o que tem de mais positivo dentro de si, que se vê obrigado por uma questão de sobrevivência a não deixar transparecer que por debaixo de uma faceta existem coisas muitas coisas doces e particulares no seu ser. Tom de “Marcas da Violência” também tem que esconder o que tem dentro de si para sobreviver, mas a questão nesse filme é completamente diferente. Aqui Tom aparentemente apenas um “pai de família comum” revela toda a sua violência, seus demônios e o que existe de mais assustador e bestial em si ao ser confrontado com o horror que bate na sua porta e desestabiliza a sua vida. O diferencial é que Cronenberg e Mortensen estruturam a encenação desses homens não como seres que estão num eterno disfarce e sim homens que são essas duas eternas contradições ao mesmo tempo e tem que viver com elas. Aqui essa lenta e arrebatadora desilusão externa e interna do seu protagonista é interpretada de forma primorosa por Mortensen.

O grafismo de embrulhar o estomago do seu cinema continua aqui mas aparece na sua abordagem da violência. Cronenberg constrói e filma com precisão um cinema clássico, sofisticado, sempre minimalista e preciso nos seus comentários sobre a violência presente no cenário norte–americano o que faz com que esses comentários sejam ainda mais poderosos e então de repente o filme rompe tudo isso em uma violência brutal, sangrenta, animalesca, explicita e onde os estragos que tiros, porradas, agressões e estupros fazem nos seus personagens por exemplo que é de fato tão horrorizaste que queremos desviar os olhares para elas como na primorosa cena do assalto que abre portas pra trama do filme e pro seu tom sempre desconfortável espelhando os aspectos mais doentios daqueles personagens. 

Cronenberg cria sequencias de violência que não apenas criam tensão e revelam o posicionamento daqueles personagens mas também mostram o que de fato a violência é: o horror repentino que não pode ser mensurado e que destrói vidas. Fugindo de qualquer glamourização Cronenberg e o roteirista Josh Olson aprofundam essa violência nas relações complexas dos seus personagens de maneira espetacular mesmo. De como a violência está no seio da comunidade norte–americana usando uma família comum para espelhar esse macro. A trama paralela do filho mais velho de Tom, Jack (Ashton Holmes), sofrendo bullying dos colegas numa das abordagens mais realistas e precisas do tema fugindo de qualquer clichê de um assunto tão batido funciona como um aviso da violência natural ao ser humano e catártica prestes a aparecer a qualquer momento em que uma barreira do nosso psicológico é estourada. A total banalização da violência está clara nos pequenos atos da perversão demonstrada de maneira tão costumeira no cotidiano dos assaltantes que o nosso protagonista acaba matando, nos vilões Carl Fogarty (Ed Harris) e Richie Cusack (William Hurt) trabalhando num contraste entre a frieza quase demoníaca e a loucura total que esses homens vivem.
E as dinâmicas entre sexo – tema sempre presente na obra de Cronenberg – também estão presentes aqui na sua relação com a violência. A rotina sexual já costumeira de Tom com a sua esposa Edie (Maria Bello) onde o máximo são tentativas frutadas de fantasias sexuais para compensar um tempo perdido por terem se conhecido mais velhos é um contraste para como a violência ao mesmo tempo destrói e movimenta não apenas o casamento mas também a dinâmica sexual deles. A descoberta de um novo lado do seu marido despertam ao mesmo tempo nela sentimentos complexos que vão da total repulsa a uma atração física inconsciente e incontrolável que andam juntas numa eterna abordagem da violência dentro da relação sexual e do sexo como uma dinâmica de poder que trabalha junto com o tom animalesco da violência. Nada na relação de nenhum dos personagens é muito certo. Eles se amam? Eles se odeiam? Ambos? O que eles sentem uns pelos outros? Quem são eles? Isso importa? Na realidade não muito. O que Cronenberg parece querer é contestar o status quo de um filme que em mãos inferiores poderia ser só um thriller clichê digno de "Supercinee que aqui vira uma obra–prima porque olha com uma verdade impressionante para as complexidades e contradições presentes em situações e pessoas tão extremas. Maria Bello está fantástica fazendo esse terremoto muitas vezes silencioso de contradições enquanto um William Hurt deita e rola num papel pequeno mas de um impacto gigante. Além de fazer um antagonista extremamente competente em apenas uma cena ele consegue construir um arco impressionante para o seu personagem conseguindo oferecer toda a dinâmica complexa e particular entre Richie e o seu irmãozinho. Quem também rouba cena é um Ed Harris excelente que também com um tempo pequeno em tela oferece uma força poderosa e calma da violência que abre a porta para o inferno entrar na sua vida.

Em um final tão genial quanto o resto do filme no momento em que Tom volta pra casa e pra sua rotina normal após ter cruzado com os últimos momentos de violência clara que cruzaram o seu caminho: tudo mudou. Porque a violência não é apenas algo físico. É algo invisível que mudou completamente a vida e a dinâmica daquela família. E eles terão que viver com aquilo, o que arrasa todos. Porque a violência sempre destrói tudo e todos diretamente ou indiretamente e é isso que Cronenberg quer mostrar e mostra de maneira tão primorosa.

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