O MELODRAMA TROPICAL DE "A VIDA INVISÍVEL" (KARIM AÏNOUZ, 2019)

Depois de assistir “A Vida Invisível”, novo longa–metragem do cineasta Karim Aïnouz, me veio na cabeça que o filme é sobre muitas verdades. Verdades que conhecemos, vivemos e testemunhamos. Verdades terríveis. A verdade sobre como o patriarcado é estruturado dentro de uma sociedade misógina e doente que destrói a vida de tantas mulheres, sobre a opressão de gênero, de como é foda ser mulher, de como nós homens somos parte de uma engrenagem perversa e de como a união feminina sobrevive e luta para sobreviver contra as maiores das opressões numa narrativa feminista. Sem jamais deixar de se afirmar como tal e inserindo isso de uma maneira tão potente e natural dentro do seu universo. É a história muitas vezes invisível de tantas e tantas mulheres.

Como Karim diz essa é a história de “como as mulheres avançam e os homens continuam os mesmos”. O que ele faz para contar essa história com essas tantas verdades envolvendo o amor das irmãs Eurídice (interpretada por Carol Duarte) e Guida (interpretada por Julia Stockler) separadas fisicamente mas nunca emocionalmente por uma sociedade misógina é criar um melodrama tão lindo, belo, forte, visceral e bem construído como fazia que o cinema brasileiro não oferecia de uma forma tão emocional que chega a ser física. Se Karim de forma fantástica em “Madame Satã” consegue um efeito totalmente físico e imersivo ao equilibrar uma intensidade carnal, violenta, assustadora e repentina com um olhar doce e sensível tão próximo das suas protagonistas aqui isso se repete de forma diferente em sua forma e narrativa mas conversando com o universo do Rio de Janeiro das décadas de 40 e 50 e com a filmografia do diretor.

“A Vida Invisível” nunca cai no piegas, no exagero, no manipulativo ou no cafona, pelo contrário, ele te comove e muito ao ponto de te arrancar várias e intensas lagrimas porque consegue construir tudo aquilo com sinceridade, com verdade, com um olhar tão crível diante do nosso mundo, sem concessões e com uma ousadia dura típica do cinema de Karim que ao mesmo tempo te oferece uma narrativa tão sensual quanto emocionante em que as cores fortes da direção de fotografia não refletem apenas esse “melodrama tropical” que testemunhos mas também uma sexualidade que ronda as suas personagens naturalizando o sentimento do desejo sexual feminino de explorar o seu corpo sem nenhum tipo de moralismo ou juízo machista e sem jamais glamourizar ou romantizando a violência sexual, o estupro e o egoísmo masculino superficial e narcisista em relação ao sexo presentes nos seus parceiros que essas mulheres passam sistematicamente numa realidade cruel.

Karim repete algo que ele fez no já citado Madame Satã, na sua outra–prima “O Céu de Suely“ e em “Praia de Futuro” tratando diferentes grupos sociais oprimidos e tratados como lixo pela sociedade dando um palco para essas camadas sem cair em qualquer fetichismo ou simplificação.
 
E oferece um experimento completo que abraça o melodrama e o folhetim no todo da sua estrutura de uma maneira inteligentemente sútil que deixa o filme ainda mais interessante num estudo de construção de dramaturgia muito inteligente. Karin já declarou que queria construir um longa–metragem que se comunicasse com a raiz melodramática que temos na sociedade brasileira: as telenovelas. E pra isso foi estudar até Janete Clair, a grande novelista brasileira. Somando a isso ele constrói estaticamente e narrativamente com inspirações também no cinema de Todd Haynes, com quem Karin já chegou a trabalhar, e claro no cinema de Douglas Sirk, o rei do melodrama. Essas referências fazem com que o filme tenha uma construção melodramática pulsante e atual como muito dessas obras melodramáticas modernas do cinema e da TV tem até se apropriando desses fatores presentes na cultura brasileira e universal mas de uma forma absolutamente marcante. Karin fornece uma condução absolutamente sincera e com um tesão tão grande ao filme todo fornecendo uma alma tão avassaladora naquilo que ele mostra de uma forma avassaladora que é linda de se assistir de um jeito muito sincero ainda somando esse fator a sinceridade já conhecida dele como diretor em como construir essas narrativas e como observar as suas personagens. O cinema de Karim é um cinema sobre empatia. E nos importamos com os seus personagens e suas histórias por um senso exato que ele tem da empatia, de identificação com as suas narrativas ou então nos atingindo em lugar especial do coração em que a dor do outro num mundo que foi construído de uma maneira injusta mexe com a gente e nos toca pelo olhar generoso e pela pesquisa que faz de determinados grupos sociais ao tratar das suas narrativas sem cair em oportunismos ou erros comuns típicos disso.

E tudo soma e é bem equilibrado para te oferecer um verdadeiro terremoto emocional que vai num crescente incrível (uma cena passada em um restaurante envolvendo um aquário é o exemplo plástico perfeito disso refletindo todo o melodrama construído ao filme todo visualmente) até um final simplesmente devastador emocionalmente. A dramaturgia do filme é tão bem construída e visceral em todos os detalhes que ele pela forma que cria o seu texto, filma o seu texto, filma os seus atores, filma as suas locações e se constrói dramaticamente que gera numa avalanche de sentimentos onde tudo é crível. O filme é extremamente inteligente em construir cenas e falas durante o longa cheias de humor que aliviam muito bem o tom duro e de sofrimento que ele tem mas nunca pesa a mão porque tem um domínio certeiro e ainda bota muito bem pontualmente falas que durante o filme todo salientam a sua ideia principal.
A estética belíssima, a trilha sonora e música bem pontuada, a direção de fotografia equilibrando um tom muito escurecido com cores muito fortes e quentes é absolutamente imersiva, a cuidadosa direção de arte, os figurinos, tudo é lindo e extremamente sofisticando, mas trabalha em função da narrativa e não acima dela. É uma história tipicamente brasileira mas nem por isso menos universal (inclusive até por isso ainda mais universal) que não se comunica apenas com Brasil mas com todo o mundo. É sobre a mulher brasileira mas também sobre cada mulher que está dentro dessa sociedade misógina. Sobre as mulheres do mundo todo, sobre nossas mães, avós, tias, vizinhas, amigas, conhecidas e sobre a engrenagem em que nós homens estamos na sociedade da forma mais maléfica e comum possível.

O elenco funciona de um jeito milimetricamente perfeito numa unidade em comum muito forte fazendo com que uma incrível Carol Duarte consiga transmitir toda a força sensível e os conflitos crescentes e silenciosos de sua Eurídice até a sua explosão e uma fantástica Julia Stockler faça da sua Guida uma personagem hipnotizante tão comovente quanto humana admirável com uma garra dramática e um corporal em cena que deixam a sua interpretação gigante. As protagonistas brilham em duas interpretações excelentes que se conversam e se completam de um jeito lindíssimo. E o personagem do Gregório Duvivier funciona muito bem numa decisão de casting inteligente pra construir esse homem misógino que é só medíocre e patético que oprime a sua esposa de uma forma tão real fugindo do vilão que torce o bigode como é típico desse tipo de personagens. Ele é o seu pai, o seu avô, o seu tio, o seu vizinho, o seu amigo e ele é você. Ele é parte de uma lógica que eu e você homem que me assiste podemos cair a qualquer momento. Ele é o machismo da sua forma mais real possível.
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E ao final quando uma genial Fernanda Montenegro aparece sabemos que estamos vendo algo além de uma simples participação especial, estamos vendo uma força da natureza que nós faz chorar apenas pela forma que domina gestos tão costumeiros do nosso dia–dia em uma cena tão simples mas que sintetiza e dá o selo no ponto do filme por inteiro.

A Vida Invisível não ficou entre os filmes selecionados para entrar no Oscar de melhor filme estrangeiro e por isso nem foi indicado, apesar de ter sido aclamado pela crítica internacional e em premiações importantes como o Festival de Cannes, mas isso não importa. A Vida Invisível não é apenas um filme “vaginal” como diria Fernanda Montenegro, mas um filme brutalmente e lindamente verdadeiro na forma que é "vaginal".

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