MOSTRA DE SÃO PAULO 2020

Textos escritos por Diego Quaglia.

Capa de Cid Souza.

Textos meus sobre filmes assistidos na 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, respectivamente: “Mosquito”, “Dias”, “O Despertar de Fanny Lye” e “Druk”. 

MOSQUITO“ (João Nuno Pinto, 2020, Portugal)

“É doce, caralho”.

Moçambique, na África, se torna tanto a prisão quanto um estranho tipo de novo lar pra Zacarias, um jovem soldado português que protagoniza absolutamente “Mosquito” do diretor João Nuno Pinto. É a primeira Guerra Mundial, estamos numa terra colonizada e é justamente aí nesse cenário caótico – exposto também pelo trabalho de som que acompanha esse mergulho em meio ao caos – que Zacarias se vê perdido. O caos da guerra é estudado de forma bruta, cruel e suja, os cenários exalam podridão e todos os militares, os homens brancos, que conhecemos nessa jornada são figuras asquerosas. Incluindo o próprio Zacarias. Nunes ressalta sempre a sujeira daquela situação, os insetos, até árvores parecem opressoras e o momento que o corpo imundo de Zacarias se banha na água parece libertador. Uma câmera subjetiva que aparece pontualmente no filme só nos deixa mais próximos de Zacarias. O diretor de fotografia Adolpho Veloso compõe um estudo sobre a complexidade do seu personagem central com as imagens: a claridade e a escuridão são contraentes constante no filme marcando o rosto do personagem, as chamas da fogueira, as sombras da escuridão, o sol, os fósforos que ilumina rostos e o local, a claridade, as trevas, toda a imagética do longa–metragem parece querer traçar junto com a complexidade do seu personagem central que vive não dividido, mas preso entre diferentes esferas de quem ele é. Perdido, Zacarias se torna um bicho e adquire um estado animalesco. Se habitua com o novo aspecto da situação, com o novo ambiente que está e contempla uma vida nele. Mas nunca abandona seu “orgulho” imperialista doentio, a crueldade, o racismo, os preconceitos e a violência vindos da Europa. Esse confronto de ideais sendo expostos por uma terra estranha só vão ficando mais e mais claros pelos loucos que aparecem no caminho, os locais, rituais, a passagem sexual e a violência que cruzam esses espaços culminando na catártica cena da praia no final. O rapaz João Pedro Nunes, nosso protagonista, é excelente embargar como condutor desse passeio quase alucinógeno ressaltando esse aspecto cru e violento do filme numa composição bem corporal que muito lembra o trabalho de Klaus Kinski no cinema de Herzog. Seus gritos não param de ressoar.

DIAS“ (Tsai Ming–Ling, 2020)

Num ano como 2020 onde torcemos por novos encontros e o nosso dia–dia é permeado por momentos exaustivos, ocos e onde acabamos nos sentimentos presos e solitários a um mesmo espaço, um filme como “Dias” tem ainda mais significado. Porém o mérito dele está muito além disso. Vemos dois homens em seus cotidianos separadamente observando pingos de chuva, se banhando, levando alface para depois cozinhar, preparando a comida, e é aí que Tsai Ming–Ling se destaca ao filmar separadamente o cotidiano de dois homens diferentes em todos os aspectos, nas tarefas mais banais e num silencio permanente dando atenção para a carne humana muitas vezes em camisa e para um longo processo envolvendo as costas de um dos protagonistas em especial. Todo esse preparo exaustivo numa criação de desconforto e lentidão acaba não sendo só para emular brilhantemente a vastidão oca da banalidade em nossas vidas, mas também para expor como tudo é uma preparação para ir compondo a força de um “encontro” quando ele acontece e se revela uma das sequências mais incríveis de 2020. Os sentimentos mais contraditórios aparecem ali numa força impressionante, falando uma série de coisas apenas com as suas imagens, fazendo com que cada um dos sentimentos ao lidar com o “antes” e o “depois” saltem aos olhos e se justifiquem brilhantemente. Tudo é meio vazio, é meio fugaz, é meio triste, tudo volta ao normal, mas é muito forte, impressionante realista, amistoso, mas também solitário, instantâneo e descartável num mundo de preenchimentos da solidão.

O DESPERTAR DE FANNY LYE” (Thomas Clay, Inglaterra)

Um filme de rompimento. A relação entre cinco personagens – quatro adultos e uma criança – numa fazenda do século 17 acaba servindo como palco para que o cineasta Thomas Clay reflita as relações de um tempo e um pensamento tocadas para sempre tanto positivamente quanto negativamente pelo “novo” passando por muitos gêneros e tons diversos. De um acolhimento vem o confronto, o choque entre visões de mundos e ideologias, a tensão sexual, a inversão de papel constante entre algoz e vítima, entre o “dono da casa”, ente como aquelas relações funcionam e para os caminhos que os personagens vão. Esse rompimento não para nunca assim como a movimentação de câmera, passeando sempre solta pelos ambientes e os rostos dos seus atores – fotografados muitas vezes por uma fumaça nos rostos –, por esses campos e pelas mais diversas dimensões de visões. O excecional texto de Clay discute o patriarcado, o abuso familiar, as relações familiares, o matrimonio, as relações afetivas, a misoginia, a cegueira da religião – como instituição – e a violência dos poderosos sendo desafiadas com a emancipação feminina, novas visões de mundo e de viver com suas próprias idiossincrasias e brilhos. Maxine Peake, Charles Dance, Freddie Fox e Tayna Records constroem brilhantemente seus personagens que vão se revelando longes de qualquer maniqueísmo aparente.

Druk” (Thomas Vinterberg, Dinamarca)

Thomas Vinterberg entourage.

Tem coisas bem bacanas – o Mads Mikkelsen está legal, a química dos atores funciona e traz cenas genuinamente divertidas nesse conto sobre a tal crise da meia–idade, é sempre bom ver o reencontro do Mads com o Thomas Lo Larsen, é um filme que consegue transpor fisicamente um estado de bebedeira com muito realismo tanto pela direção dos atores e da filmagem e por aí vai – mas sei lá no final das contas me parece que o filme dá muitas voltas e truques até meio baratos para tentar esconder que é bem basicão na comédia e no dramalhão. Para um diretor que já fez “Festa de Família” e “A Caça” é um caminho bem protocolar em questão narrativa.

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